domingo, 6 de junho de 2021

O Festival da Bela Reunião

No III mês de Shomu, da Pesdjentiu (Lua Nova) até a Tepy-Semdet (Lua Cheia) era celebrado um dos festivais mais populares de Kemet: O Festival da Bela Reunião. Esse Festival era uma celebração do amor entre Hethert e Heru-Wer. 



História

O Festival da Bela Reunião (em kemético: Heben Sehen Nefer), também conhecida como Bela Festa de Behedet (Sehen Neferen Behedet), como rito de fecundidade destinado à celebração da fertilidade e renovação da natureza, decorria no mês de Ipip, 11º mês do ano, terceiro mês da estação da Shomu (da estação da colheita). Os 14 dias da festa situavam-se entre o dia da Lua Nova e o dia da Lua Cheia. Era um dos mais famosos, interessantes e populares acontecimentos religiosos do Alto Kemet, envolvendo os templos de Iunet (Dendera) e de Behdety (Edfu), ou seja, a deusa Hethert e o deus Heru-wer.

Templo de Iunet


Templo de Behdety

O festival é encarado como a celebração de um casamento divino, uma hierogamia (hieros gamos): a deusa de Dendera saía do seu santuário e navegava até Edfu (cerca de 180 km) para visitar o seu esposo divino e assim conceber o deus Ihy, Netjer da Música, que, meses depois (IV Peret), «nascia» nos Mammisi (pequeno templo), tanto em Iunet como em Behdety. Anualmente, este rito festivo garantia a eterna ordem do cosmos.

A Festa da Bela Reunião era uma mistura de tradições míticas e rituais, mas a dimensão mais importante deriva do tema da cíclica regeneração da vida. A época do ano em que se celebrava (colheitas agrícolas) era propícia para essa comemoração. Quer o nascimento divino, quer a vitalidade e a vida associadas a Hethert, são signos da essência teológica da festa. O objetivo principal dos ritos performativos era a regeneração global de Kemet e do universo.



Esta festa era extremamente popular, talvez mais do que qualquer outra, participando o povo nas celebrações não apenas nos dois templos e nas duas cidades diretamente implicados, como também ao longo do percurso fluvial. Nas várias paragens que o cruzeiro processional pelo Nilo efetivava, como por exemplo, em Karnak (onde era feito banquetes aos Akhu e em Nekhen, cidade tradicional de Heru-Wer, a deusa Hethert visitava os vários deuses e deusas residentes, momento que atraía multidões de peregrinos e de enviados de outras cidades e templos vizinhos. Alguns desses deuses (por exemplo a forma local do deus Heru-Wer de Nekhen) acompanhavam o cortejo até Behdety, como membros da comitiva fluvial da deusa.

O Festival da Bela Reunião era comemorado com uma abundancia grandiosa de flores, banquetes e musica. Tanto em sua saída de Iunet, quanto em suas paradas em Karnak, Nekhen e a própria Behdety. Com isso, podemos imaginar a alegria do povo que acompanhava todo o festival. 

Barca Nebet Merit
 


A barca de ouro de Hethert foi chamada de Nebet Merit, que significa Senhora do Amor e deve ter causado admiração nas pessoas que ladeavam a margem do rio quando a procissão parou em locais como o templo de Asheru em Karnak, onde Hethert visitaria o deusa Mut. A barca de Hethert então parava em vários locais ritualmente sagrados como Esna, onde eram recebidos no templo de Khnum e Anket, deuses da festilidade.

Enquanto a procissão de Hethert se aproximava de Behdety, Heru-Wer, acompanhado por Khonsu, partia em sua própria barca para encontrar sua consorte. O local conhecido como Wetjes-Hor, ao norte do Templo de Edfu, era considerado o local original do monte primitivo da criação onde um junco foi plantado e Netjer se estabeleceu para realizar o ato da criação. É significativo que a jornada de Hethert inclua este local onde ela se reencontra e é engravidada por seu consorte.

A partir desse ponto, Herthert e Heru-Wer navegavam juntos até Behdety, onde seriam recepcionados com uma grande festa e ficaria reclusos dentro do templo até  Tepy-Semdet (Lua Cheia) e fora dele, todos celebrariam com muita comida, música e festa. 


Na imagem acima: Templo do Deus Heru em Behdety (Edfu), detalhe da barca no rio sagrado de Heru das cenas relacionadas à "Festa da Bela Reunião" representada no "Tribunal das Ofertas" (que é o Tribunal Aberto): O santuário com a barca portátil de "Heru-Behdety Grande Deus Senhor do Céu" (tradução dos hieróglifos do topo) e o naos onde está abrigada a estátua de culto ao Deus. O casco da barca portátil termina na popa e na proa com a cabeça de falcão de Hórus usando o disco solar com o Uraeus.

Durante a estadia de Hethert em Behdety, acontece no Hemisfério Norte o Solstício de Verão. Que ocorre entre os dias 20 e 21 de Abril. Neste dia um efeito astronômico fantástico no templo de Behdety acontece: um alinhamento do sol com uma pequena abertura no teto do Santuário onde abriga a barca agrada de Heru e de Hethert, iluminando as duas barcas e ícones com a maior forca e intensidade do Sol. Esse efeito só acontece uma fez por ano. Veja o vídeo abaixo.



Já na Tepy-Semdet, Hethert navegaria, agora grávida, de volta a Iunet.


Função da Bela Reunião



Fertilidade, renovação, amor e renascimento são temas primordiais do festival. Todos os devotos se voltam para essas energias em busca de impulsiona-las no interno e externo. Pedidos para Hethert e Heru-Wer são feitos envolvendo agradecimentos de pedidos realizados, para pedidos e tambem para celebrar uniões. Mesmo que casamentos não eram celebrações ritualizadas em Kemet, era comum a união entre pessoas e também pedidos de fertilidade ao casal. Costumo dizer que este festival é o "Dia dos Namorados" Kemético.


Celebrações Hoje

Eu amo o Festival da Bela Reunião, é meu ritual preferido e eu celebro todos os anos, desde que descobri, em 2012, que meu pai é Heru-Wer. Sendo assim, essa parte está muito mais para um relato de como eu costumo celebrar, já que a Ortodoxia Kemética deixa seus devotos livres para criar uma rotina ritualista privada, desde que respeite o calendário, questões históricas e é claro, Maat. Eu busco em meu altar, recriar a procissão colocando as dois ícones em pontas diferentes do altar, ao passar dos dias, vou aproximando e na maior parte do tempo, os ícones ficam juntos envoltas de uma fita vermelha ou um tecido branco de linho ou totalmente de algodão e em volta, as oferendas. 
As oferendas basicamente é tudo relacionado a fertilidade, renovação, amor e renascimento.
A Barca Nebet Merit faz paradas aos principais templos de divindades ligadas a Hethert ou Heru-Wer, divindades ligadas a fertilidade e/ou a guerra. Pense nisso na hora das oferendas e pedidos.
Abaixo, eu faço um cronograma de sugestão de como celebrar o Festival da Bela Reunião seguindo as paradas feitas nos templos e depois a celebrações ligadas a Casal Divino propriamente dito. Sinta-se a vontade para modifica-lo de acordo com sua gnose pessoal (UPG - Unverified Personal Gnosis).




Sugestão de como celebrar o Festival da Bela Reunião

Dia 1 - Saída de Iunet - Oferendas a Hethert 
Dia 2 - Parada em Gebtu (Koptus) -  Oferendas a Min 
Dia 3 - Parada em Karnak e Luxor - Oferendas a Amun e Mut - Oferendas aos Akhu
Dia 4 - Para em Djerty (Per-Montu) - Oferendas a Montu
Dia 5 - Parada em Iunyt (Esna) - Oferendas a Khnum
Dia 6 - Parada em Nekhen - Oferendas para Heru-Wer - Encontro dos Icones de Hethert e Heru-Wer
Dia 7 - Chegada em Behdety - Ícones envoltos de uma fita vermelha - Oferendas aos dois Netjeru
Dia 8 -  Celebração do Casamento Divino - Oferendas, orações e pedidos.
Dia 9 - Recitar poemas de amor para Hethert e Heru-Wer - Celebrar o amor.
Dia 10 - Fazer Hekas (magias/feitiços) para amor ou sexo.
Dia 11 - Pedir proteção ao Casal Divino aos casais.
Dia 12 - Agradecer as Colheitas de todo ano.
Dia 13 - Pedir fartura e prosperidade ao ano vindouro.
Dia 14 - Celebrar Hethert gravida - pedindo muita prosperidade e fertilidade.

Mapa de Kemet

Oferendas para o Festival da Bela Reunião

Para esse festival, é auspicioso oferecer música, dança, poemas e muita alegria. Mas você quiser oferecer alguns alimentos, pode seguir a lista abaixo, seguido ainda das cores que podem enfeitar seu altar e suas vestes.

Oferendas Comuns de Heru-Wer:
Carne vermelha
Cerveja Preta
Vodka
Rum escuro
Laranja
Alimentos temperados (não que queime, mas suficiente para levantar um pouco o sabor)

Oferendas comuns de Hethert:
Flores
Vinhos
Tamaras
Frutas
Leite
Mel
Figos

Cores:
Vermelho
Rosa
Dourado
Azul
Verde

Hino do Festival da Bela Reunião
Escrito por HeryHeru

Oh Hethert
Senhora do amor e do prazer
Que tu possas inundar o mundo com seu amor incondicional
Que possas ensinar o homem o dom de amar
Que a vosso amor possa espalhar-se e com ele o respeito!

Oh Heru-wer
Deus Guerreiro
Que tua espada possa manter Ma'at no mundo
Que sua força e coragem inunde o coração de todos os que sofrem nesse mundo
Que seu ira recaia sobre aqueles que carregam em seu coração o ódio e o desamor.

Oh Hethert, Oh Heru-wer
Esposa e Marido do mundo
Que o preconceito dê lugar ao respeito
Que o ódio dê lugar ao amor
Que o isfet dê lugar a Ma'at
E assim, todos os filhos de Ra, possa alegrar-se em viver num mundo paz, amor, respeito, equilíbrio e justiça!






segunda-feira, 29 de março de 2021

O Poder Divino - Netjer

Quando você começa a pesquisar sobre Kemetismo ou Kemet (Egito Antigo), de uma forma mais tradicional ou ortodoxa, logo se depara com algumas coisas que dificilmente lerá em alguns livros. Vários termos, nomes, ideias e pensamentos são muito diferentes do que normalmente vemos nos textos e livros mais populares sobre Egito Antigo. No entanto, devido as ultimas pesquisas e principalmente a pessoas que querem se conectar de formar mais tradicional a Kemet, vemos esse véu se abrir e nos mostrar algumas coisas um pouco diferentes do que até então estávamos acostumados. E o conhecimento sobre Netjer talvez seja o mais impactante nessas descobertas.

Reconstrução digital do Templo de Edfu (Behdety)

A antiga palavra egípcia "netjer", às vezes também escrita "netcher" e, um tanto extraviado, "neter". É transliterado como nTr, onde o “T” representa uma parada geralmente representada na fala ocidental como um som “ch”. Em suas escritas hieroglíficas, hieráticas e demóticas, os egípcios não empregavam símbolos que representassem vogais, de modo que o máximo que podemos reconstruir a partir dessa palavra antiga são as consoantes transliteradas nTr. Isto é, como acontece com tantas palavras do antigo vocabulário egípcio, sem as vogais não podemos saber com certeza como nTr soava quando falado nos tempos faraônicos; daí "netjer".


No entanto , essencialmente não há razão para duvidar de nosso entendimento de nTr . O uso dessa palavra é amplamente atestado no registro histórico desde a pré-história tardia do vale do Nilo. Mas, antes de descobrir o que essa palavra significava para os antigos egípcios, vamos eliminar um par de exemplos do que NTR que não quer dizer. Não é a origem de nossa palavra “natureza”, por exemplo. Nossa palavra “natureza” e seu significado do mundo coletivo de plantas, paisagens, animais e pessoas, em última análise, deriva do francês antigo do latim nasci. Na verdade, os egípcios não parecem ter uma palavra que equivaleria à nossa palavra "natureza". Meu próprio sentimento sobre isso é - como com a ausência de um nome para sua religião na forma como usamos termos como Cristianismo, Judaísmo, Islã e Hinduísmo hoje - o mundo natural era uma parte inata e íntima da vida cotidiana e era não visto como algo separado.


Às vezes, também é sugerido que a palavra “natrão” venha de nTr. Isso tem sido argumentado há anos nos círculos acadêmicos, mas nenhuma evidência linguística convincente foi postulada para corroborar o argumento. Há uma palavra egípcia ntryt que existe em uma fonte fragmentária que foi postulada como “natrão”, mas mesmo aqui a evidência não é convincente.


A palavra nTr é geralmente traduzida como "deus" ou, como adjetivo, "divino". Com base em como os próprios egípcios usaram a palavra, esta tradução é correta. Em grego, a palavra equivalente é theos, e em inscrições bilíngues tardias onde nTr e theos aparecem mais ou menos lado a lado, é claro que “deus” é o significado principal. Indo na outra direção, desde o início da formação do Estado no Egito (cerca de 3100 a.C), o significado parece ter começado da mesma maneira. A antiga palavra nTr sobreviveu ao longo da história faraônica e na adoração do cristianismo copta tornou-se a palavra noute para Deus.


Existem inúmeras maneiras pelas quais a palavra foi escrita em hieróglifos quando pertencente a deuses, deusas ou outros conceitos divinos, e vários determinantes semânticos diferentes desenvolvidos através da história faraônica para ajudar a esclarecer significados; o determinante mais comum era, no entanto, o mastro e a bandeira:




Com base em sua própria iconografia, os egípcios nos mostraram que esse padrão era tipicamente apresentado aos pares do lado de fora das entradas dos templos. Este foi o caso também na pré-história , como em locais rituais importantes como Hierokonpolis (antigo Nekhen), conforme abaixo na imagem. Desde o início, o símbolo estava intimamente associado ao divino e ao ritual. Desenhando a partir do diagrama acima, a forma mais comum do mastro e da bandeira ao longo da história faraônica era o exemplo à esquerda (a); o exemplo do meio (b) aparece na iconografia nas primeiras dinastias, e os primeiros estudiosos o confundiram originalmente com um machado; o exemplo mais à direita (c) é como o símbolo aparece na iconografia no final da pré-história.



Que esse símbolo passou a representar a palavra “deus” ou “divino” deve ter sido uma progressão natural para os egípcios; examine as paletas de Narmer do final da pré-história e do início do período dinástico, e você verá como os estandartes e as bandeiras se destacaram como iconografia importante desde o início.



O termo nTr no singular geralmente significa “deus”, como em uma divindade masculina singular; era abundantemente usado neste sentido e frequentemente sem referência a um deus específico. Isso não deve ser entendido como significando que os egípcios acreditavam no Deus Único como no sentido judaico-cristão, um conceito errado sob o qual muitos dos primeiros estudiosos trabalharam (devido ao seu treinamento clássico em estudos bíblicos). Em seu importante livro Conceptions of God in Ancient Egypt(1971) o eminente egiptólogo Erik Hornung pôs esta ideia para descansar definitivamente. O politeísmo é o consenso geral hoje, e foi notado como a bandeira poderia ser usada para denotar “divindade” em um sentido genérico. O marcador feminino foi usado para indicar uma deusa (nTrt), e o plural (nTrw) poderia ser indicado de várias maneiras: três bandeiras; uma única bandeira com três traços verticais; e, nos últimos exemplos, três bandeiras intercaladas com três cobras, a própria cobra representando a divindade e / ou realeza divina.


Podemos identificar isso em outras religiões africanas. No Brasil, mais comumente no Candomblé, uma bandeira branca hasteada no Terreiro indica o caráter sagrado deste espaço, muito similar aos templos Keméticos.



Facetas de nTr são evidentes no mundo mortal dos antigos egípcios. É um exagero sugerir que todos os reis egípcios eram considerados deuses, mas esses reis certamente eram vistos como alguém muito mais próximo dos deuses do que as pessoas comuns. O status do rei como semidivino se reflete em um de seus títulos, nTr nfr, que significa "Deus perfeito" ou "Deus maravilhoso". Os mortos eram vistos como algo divinos, tendo vivido para sempre na terra dos deuses. A palavra egípcia para “incenso” era snTr, que significa literalmente “tornar divino deificado”.


O nTr egípcio também parece ter sido intimamente associado aos mortos, como indiquei acima. Até recentemente, mastros de bandeira eram comumente colocados do lado de fora de tumbas no Norte da África e no Sudão, refletindo uma tradição vista no Egito faraônico que remontava à pré-história; alguns argumentaram que nTr pode ter se referido originalmente aos mortos. A etimologia e a origem da palavra nTr permanecem desconhecidas, apesar de décadas de tentativas dos linguistas de tentar identificar cognatos e outras conexões com as línguas afro-semíticas, mas seu significado não é um mistério. Os próprios egípcios nos deixaram um amplo registro da palavra para examinar.


Por fim, vamos lembrar onde normalmente aparece a palavra nTr na Ortodoxia Kemética. O nome do templo principal é House of Netjer, designa a estrutura física e até mesmo a ideia de comunidade da religião. No principal símbolo da Ortodoxia Kemética vemos os hieróglifos Per e Netjer, esses hieróglifos significam Casa de Netjer/Casa de Deus/House of Netjer.





Espero que vocês tenham gostado de aprender um pouco mais sobre Kemet. Até a próxima!